Reconstruir RS – Gaúchos já possuem diagnósticos e planos de ação para suas bacias hidrográficas
Existem levantamentos detalhados sobre as condições dos rios do RS e os fatores que podem gerar cheias e inundações
Nem europeus e nem norte-americanos. São gaúchos os levantamentos a respeito dos rios que correm pelo Estado, e eles já existem. Registram informações básicas, como interligações, tipos de relevos e solos por onde passam todos os cursos d’água, que ajudam a explicar como chuvas no norte do RS podem se transformar em uma agrura para o sul. Mas não ficam nisto: também mapeiam problemas existentes, estabelecem como diferentes intervenções e usos impactam os cursos d’água, projetam consequências, como riscos de cheias, enxurradas e inundações. E incluem planejamento de ações que trazem, entre outros pontos, medidas mitigadoras e soluções possíveis.
Os dados constam nas milhares de páginas de relatórios que compõem os planos das bacias hidrográficas do Estado, levantadas e organizadas a partir de discussões realizadas nos Comitês de Gerenciamento destas bacias, os CBHs. Os comitês são, por definição legal, os fóruns de debates para a tomada de decisões referentes a gestão dos recursos hídricos de cada uma das regiões.
O território gaúcho está dividido em três grandes regiões hidrográficas, que abrigam um total de 25 bacias. Em todas as 25, há comitês. Seus documentos, com uma profusão de informações técnicas, mapas e considerações, estão disponíveis no site da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema).
O mesmo acontece com o arcabouço legal que instituiu um Sistema Estadual de Recursos Hídricos, a partir da Constituição Estadual de 1989 e, na sequência, com a lei estadual 10.350/94, a chamada Lei das Águas do RS. A 10.350, que completa 30 anos em dezembro, tomou como base o modelo francês, e foi pioneira no país. Serviu, inclusive, de inspiração para a lei brasileira, promulgada três anos depois, em 1997.
Desconhecida da maior parte da população e, não raro, ‘perdida’ em gabinetes, a matriz institucional que norteia a política estadual para as águas é primorosa, acumula conhecimentos, debates e estruturas, mas encontra dificuldades em ser implementada. Agora, a partir da tragédia climática que inundou o Estado e destruiu cidades inteiras, as lacunas existentes em relação a sua execução ganharam os holofotes.
Ao contrário de estados como São Paulo e Santa Catarina, por exemplo, o RS não implantou até hoje as três Agências de Regiões Hidrográficas que deveriam funcionar como órgãos técnicos para executar as decisões dos comitês. Em 2015 foi encaminhado à Assembleia Legislativa o projeto de lei (PL) 109, que retirava a obrigatoriedade de que as agências fossem órgãos da administração indireta do Estado.
O texto não andou. Foram então celebrados convênios transitórios com entidades com capacidade para exercer as tarefas, principalmente para apoio administrativo aos comitês, o que ocorreu entre 2012 e 2021. O apoio técnico tem sido prestado pelo Departamento de Gestão de Recursos Hídricos e Saneamento (DRHS). De forma precária, segundo os dados disponíveis no próprio sítio da Sema, e com consequente comprometimento das demais funções do órgão gestor.
Segundo apontado no Relatório Anual de Recursos Hídricos de 2022 (o último disponível para consulta), ao longo daquele ano os comitês, criados por decreto em 1989, “continuaram descobertos de qualquer instrumento legal para manutenção de sua estrutura administrativa.” Da mesma forma, o RS ainda não tem um Plano Estadual de Recursos Hídricos instituído por lei, como deveria acontecer. O plano do Estado foi criado a partir de uma resolução do então Conselho de Recursos Hídricos do RS (CRH) em 2014.
“O fato é que estamos no oitavo governo desde a promulgação da Lei das Águas. E nenhum levou a cabo o que deveria. Agora, assistimos a muitos dizendo que precisamos formar organizações e contratar estudos. As organizações já existem, são os comitês de bacias, que têm representação da população, dos usuários (que utilizam com objetivo econômico) e do Estado”, elenca o coordenador geral do Fórum Gaúcho dos Comitês de Bacias Hidrográficas, Julio Cesar Salecker. Diretor de Geração, Comercialização e Mercado de Energia da Cooperativa Regional de Energia Teutônia (Certel), ele também é vice-presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas.
Na avaliação do coordenador, os eventos climáticos “super extremos” que atingiram o Estado são o maior exemplo de porque a água precisa ser gerida dentro das bacias e seus comitês. “Porque não dá para deixar os diversos setores relacionados à água fazerem obras sem entenderem o que é uma bacia. A água que explodiu agora aqui em Estrela veio de Vacaria, de Lagoa Vermelha, Caxias do Sul, Bento Gonçalves… Há uma interligação. O que acontece em uma bacia, influencia em outra. Da mesma forma, não adianta, por exemplo, Lajeado erguer um dique para proteger suas partes baixas, e jogar toda a água em Estrela.”
De modo geral, os questionamentos, entre os muitos atores que se debruçam na gestão dos recursos hídricos, englobam desde dificuldades de efetivar os instrumentos previstos na legislação para que as regras sejam aplicadas, até a manutenção e correta utilização de equipamentos básicos, como o funcionamento adequado das estações telemétricas que compõem a Rede de Alerta para Prevenção de Eventos Hidrológicos Críticos.
“As soluções existem, as alternativas para prever os eventos extremos. Mas não funcionam porque não são implementadas. A própria Lei das Águas, muitas coisas ficaram só na teoria”, assinala a vice-presidente do Comitê Lago Guaíba, Ana Elizabeth Carara. Especialista em Gestão de Recursos Hídricos, ela lembra que o plano do Guaíba, que está completo, elenca um conjunto de ações de curto prazo. Que poderiam ter ajudado ou até mesmo evitado a inundação que tomou as ruas da Capital.
As medidas incluem, entre outros pontos, a ampliação da rede de monitoramento de vazão dos rios e arroios afluentes e o monitoramento da qualidade das águas. O desassoreamento do lago e a restauração da vegetação ciliar. O incentivo à reconstrução de moradias fora de áreas de risco. A implantação de projetos existentes no âmbito da drenagem pluvial na região Metropolitana. E o estabelecimento de estratégias para a continuidade do abastecimento de água potável no caso de ocorrerem situações de crise nos sistemas de abastecimento padrão vigente.
“Esta catástrofe que assolou o RS trouxe à tona a questão de o quanto o atendimento de interesses de poucos acaba por prejudicar direitos de todos. Temos toda a base necessária. O que falta é que planejamentos, projetos, execuções e manutenções dos sistemas de saneamento (água, esgoto, drenagem e resíduos) sejam desenvolvidos e aplicados regionalmente, conforme os critérios das bacias hidrográficas, e se constituam de fato em planos de gestão pública, não de governos”, projeta o vice-presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) e representante do Sindicato dos Engenheiros (Senge) no Comitê da Bacia do Sinos (Comitesinos), Eduardo Carvalho.
Os instrumentos previstos na legislação e a situação atual
Outorga do Uso de Recursos Hídricos: a outorga para usos que alteram as condições quantitativas das águas está implementada por meio do Sistema de Outorga de Água do RS (SIOUT). O Estado não tem, contudo, um sistema de outorga com balanço hídrico para usos que alterem as condições qualitativas, ou seja, o lançamento de efluentes. A lei determina que depende de outorga qualquer empreendimento ou atividade que altere as condições quantitativas ou qualitativas, ou ambas, tanto em águas superficiais quanto subterrâneas.
Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos: prevista em dois artigos da lei, nunca foi implementada e nem regulamentada no RS. Neste ano de 2024, dois comitês, os das bacias do Sinos e do Gravataí, aprovaram critérios e valores de cobranças em suas áreas. Mas, para que as cobranças virem realidade, é necessária uma série de condicionantes, como a existência de uma Agência de Região Hidrográfica e um sistema de outorga para lançamento de efluentes.
Rateio de Custo de Obras de Uso e Proteção dos Recursos Hídricos: a legislação estabelece que as obras de uso múltiplo e as de interesse comum ou coletivo terão seus custos rateados. No RS, nunca foi implementado este mecanismo. Na lei federal, foi vetado. Em 2020 o Comitê Pardo aprovou uma deliberação sobre critérios para rateio. Também criou uma Agência, ainda não reconhecida.
Planos de Recursos Hídricos: incluem planos estaduais, planos plurianuais e os planos de bacia. O Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH) tem por objetivo orientar a implementação da política de recursos hídricos e o gerenciamento das águas, definindo objetivos e diretrizes. No caso do RS, deveria ser instituído por lei, o que ainda não aconteceu. O primeiro plano foi constituído em 2014 por uma resolução (a de número 141) do Conselho de Recursos Hídricos do RS (CRH). Em 2022 foi publicado um plano de trabalho de sua atualização, mas a minuta ainda não foi disponibilizada. Em relação aos Planos de Bacia Hidrográfica, das 25 existentes, apenas 11 possuem planos completos (quando são concluídas suas três fases). Outras oito possuem planos incompletos. E seis ainda não possuem planos. Um plano completo inclui uma primeira etapa, de diagnóstico, que faz um balanço entre a disponibilidade e a demanda de água da bacia, e determina a qualidade dos corpos hídricos. A segunda etapa, de prognóstico, considera população, economia, uso e ocupação do solo para estimar demanda futura e lançamento de efluentes. A partir dela, é definido o enquadramento dos corpos hídricos e o máximo outorgável de água. A última fase aponta o conjunto de ações necessárias para atender as metas de enquadramento.
Enquadramento: é dividido em classes de uso e conservação, que indicam que a água tenha qualidade compatível com as utilizações mais exigentes a que é destinada. A escala abrange cinco classes (Especial, 1, 2, 3 e 4), na qual a Especial é a de melhor qualidade. O enquadramento também tem por objetivo diminuir os custos de combate à poluição com ações preventivas permanentes. Uma das atribuições dos comitês é justamente propor o enquadramento das bacias, estabelecendo sua classe atual e definindo as ações necessárias para que ela alcance uma classe melhor. A maior parte dos rios do RS já possui enquadramentos definidos. Os que não têm, seguem resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que determina que almejem classe 2.
Sistema de Informações de Recursos Hídricos: abarca a coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de informações sobre os recursos hídricos. E os fatores que interferem em sua gestão. Hoje diferentes órgãos e empresas possuem sistemas ou mecanismos de coleta ou medição de dados variados, mas sua integração ampla ainda não aconteceu. Esta integração é um dos pontos que vêm recebendo grandes cobranças após a tragédia climática.
A situação em cada Bacia
Tem Plano Completo | Tem Plano Incompleto | Ainda Não tem Plano |
Apuaê-Inhandava | Alto Jacuí | Butuí-Icamaquã |
Baixo Jacuí | Ibicuí | Litoral Médio |
Camaquã | Ijuí | Mirim São Gonçalo |
Caí | Passo Fundo | Negro |
Gravataí | Quaraí | Piratinim |
Lago Guaíba | Taquari-Antas | Várzea |
Mampituba | Turvo Santa RosaSanto Cristo | |
Pardo | Vacacaí-Vacacaí Mirim | |
Santa Maria | ||
Sinos | ||
Tramandaí |
Fonte: Jornal Correio do Povo
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