Rio ou lago Guaíba? Entenda o debate e a relação com a atual enchente

Corpo hídrico é reconhecido oficialmente pelo governo do Estado e pela prefeitura de Porto Alegre como lago. Renan Mattos / Agencia RBS/Reprodução TV Nativoos

Diálogo volta a ganhar força e novos contornos, relacionados às implicações de sua classificação no que diz respeito à ocupação do seu entorno

Um debate tão antigo quanto o tempo, a classificação do Guaíba como rio ou lago gera polêmicas há décadas. Com o registro da maior enchente da história de Porto Alegre neste mês e suas consequências, a discussão – que desperta paixões violentas entre especialistas – volta a ganhar força, bem como novos contornos, relacionados às implicações de sua classificação no que diz respeito à ocupação do seu entorno.

A discussão remonta a 1763, quando a primeira descrição técnica cartografada demarcou o Rio Gayba e o Lago Viamão. Posteriormente, em 1820, o Guaíba passou a ser considerado rio. Desde então, a classificação sofreu várias alterações. Em 1982, uma comissão composta pelo governo, universidades e entidades concluiu, em um documento, que o Guaíba definitivamente não é rio nem estuário e deveria ser chamado de Lago Guaíba.

O corpo hídrico é reconhecido oficialmente pelo governo do Estado e pela prefeitura de Porto Alegre como lago. Apesar disso, em mapas oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Marinha do Brasil, o Guaíba é denominado como rio.

— Essa polêmica é mais antiga do que os GreNais — afirma Rualdo Menegat, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A Lei Orgânica do Município de Porto Alegre considera as margens do “rio Guaíba” como Área de Preservação Permanente (APP). Nessas áreas, não são permitidas atividades que descaracterizem ou prejudiquem seus atributos e funções essenciais. A lei federal nº 12.651/2012, por sua vez, determina que as áreas situadas perto de um corpo hídrico têm como APP uma faixa que varia de acordo com o seu tamanho. No caso de ser classificado como lago, estipula 30 metros como distância mínima para construção em suas margens. Se for um curso d’água (rio), esse número pode aumentar para até 500 metros.

Coordenador geral do Atlas Ambiental de Porto Alegre e autor do sugestivo Manual Para Saber Por Que o Guaíba é um LagoMenegat ressalta veementemente que o Guaíba tem características lacustres. Além de dezenas de especialistas que o classificaram como lago ao longo dos anos, a grande maioria dos mais de 500 artigos produzidos sobre o tema o descreve desta forma, reitera o professor – embora o Guaíba seja chamado popularmente de rio.

Para Menegat, as pessoas podem chamar o Guaíba como quiserem – pois ele é de todos –, mas, do ponto de vista científico, é importante tratá-lo corretamente.

Motivos para classificar o Guaíba como lago, segundo Menegat:

  • O Guaíba tem correnteza – embora seja uma condição necessária para definir um rio, não é suficiente. Lagos, oceanos e mares têm correntezas
  • Segundo o senso comum, lagos são corpos d’água cercados por terra. Entretanto, a maioria dos lagos do mundo são abertos. Eles recebem fluxos de água e extravasam quando ultrapassam o nível
  • O leito do Guaíba está abaixo do nível do mar. A água não escoa como em um rio, no fundo, e sim por cima, como um tanque
  • O Guaíba é parte de um sistema de vasos comunicantes de lagos e lagoas. Com a maré e os ventos bloqueando a saída da água da Laguna dos Patos e do Guaíba, formou-se um lago de inundação deltaica antes do Guaíba. Nas regiões anteriores, nos rios da bacia, essa inundação foi maior nas margens, com expansão lateral da água
  • O delta é uma formação de ilhas que ocorre quando os rios encontram um corpo d’água maior, sendo uma desembocadura. As ilhas do Delta do Jacuí bloqueiam e são a prova de que o rio perdeu as forças. O delta é composto por canais, que levam a água para o lago. Depois de um delta, não há rio, porque a água não escoa mais por gravidade
  • O Guaíba tem 19 quilômetros de largura – seis vezes mais do que a largura do maior rio do mundo, o Amazonas, o que seria um contrassenso
  • O leito do Guaíba guarda o que foi inserido lá dentro

No mesmo sentido, Jaime Federici Gomes, professor de Engenharia Civil da Escola Politécnica da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), afirma que o Guaíba tem características de escoamento bidimensionais, semelhante a lagos – portanto, considera que a melhor definição é que ele é um lago.

Igualmente defensor de seu ponto de vista, o professor Elírio Toldo Jr., do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica (Ceco) e do Instituto de Geociências (Igeo) da UFRGS, sublinha que o Guaíba é um rio. Para ele, a maneira como o Estado e o município classificam a natureza do Guaíba é feita sem fundamentação científica e medições hidrodinâmicas que indiquem um padrão de circulação lacustre. Além da natureza, o nome – uma questão cultural e histórica – foi alterado para Lago Guaíba sem consulta popular. Poderia, entretanto, diferir (por exemplo, Rio Guaíba, como é conhecido), independentemente de ser um estuário, um rio ou um lago, como no caso da Lagoa/Laguna dos Patos.

A Bacia Hidrográfica do Guaíba tem 84 mil quilômetros quadrados. Ela começa nas nascentes dos rios Jacuí, Taquari, Sinos, Gravataí e Caí, que convergem para a região do Guaíba, parte final desse sistema. Para o professor, a classificação do corpo d’água é fundamental: é uma maneira de induzir o gestor público a trabalhar com o assunto, o que afeta a questão da proteção das margens. Se há uma visão limitada a um conceito errado, a gestão da bacia e do Guaíba também estará errada.

Em sua análise, a bacia está sendo mal conduzida, e os desdobramentos da atual inundação são a prova disso – a ausência de gestão leva às consequências vistas, sustenta.

— Os gestores têm de ter responsabilidade e respeitar a ciência — destaca Toldo Jr, destacando que, para isso, é preciso ter dados numéricos medidos em campo, e não é “uma interpretação de gabinete”.

Motivos para o Guaíba ser classificado como rio, segundo Toldo Jr:

  • O padrão de escoamento é o mesmo desde as nascentes dos rios até a desembocadura em Itapuã, com um padrão de circulação fluvial tridimensional, segundo o professor. A principal força que movimenta as águas na bacia do Guaíba é a gravidade, pela declividade
  • No pico da enchente, entre os dias 5 e 6 de maio, mediu-se uma vazão superior a 30 milhões de litros por segundo no Guaíba (o valor médio oscila entre 1 e 2 milhões). O volume é “gigantesco” – o suficiente para renovar a água uma vez ao dia. Se não houvesse essa vazão, Porto Alegre estaria sendo afetada por um transbordamento ainda maior. E se fosse outro corpo d’água, como um lago, esse volume transbordaria rapidamente logo nos primeiros dias da enchente, devido à falta de espaço
  • O Guaíba renova as águas com uma rapidez muito grande. Um lago não teria uma mudança tão rápida. Se fosse um lago, os impactos das inundações seriam diferentes, justamente por esse motivo
  • A entrada da água dos rios que desembocam no Guaíba ocorre em uma seção hidrométrica em frente à Usina do Gasômetro, mais estreita do que a seção de saída, em Itapuã – uma condição que não favorece o desenvolvimento de um lago
  • Junto com a água, o Guaíba transfere mais de um milhão de toneladas de sedimentos por ano, vindas da bacia.
  • O Guaíba possui um canal que é a extensão do canal do rio Jacuí, atravessando-o até Itapuã. Se fosse um lago, esse canal já estaria assoreado, mas continua ativo e profundo, permitindo a navegação, por causa do escoamento fluvial

Professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, Walter Collischonn afirma que o Guaíba apresenta características diferentes em regiões distintas da sua formação.

Motivos para o Guaíba ser classificado como misto, segundo Collischonn:

  • Em frente ao Centro Histórico, predominam características de rio, com formas alongadas, apesar das ilhas. Na orla, entre o Gasômetro e a foz do Arroio Dilúvio, também – neste trecho, a largura é relativamente pequena
  • Além disso, a velocidade da água e a declividade podem ser extremamente altas durante as cheias. No atual evento, foram medidas velocidades superiores a três metros por segundo. Nem o “mais entusiasmado especialista” que apoia o uso do termo lago ousaria nadar contra essa correnteza, declara o professor
  • A alta velocidade pode ser observada até em locais mais ao sul, como nas proximidades da Ilha das Pedras Brancas. Contudo, nessa região, a largura do Guaíba já é altamente maior, e ele passa a ter diversas características de lago, especialmente em períodos longos com menos chuva no Estado

O professor explica que houve a tendência a chamar o Guaíba de lago em função de outras características menos importantes para a navegação, como o tipo de sedimentos e de vegetação nas suas margens. Collischonn avalia que a tendência se deve a um certo afastamento das pessoas do Guaíba, já que a navegação se tornou menos importante com o passar dos anos.

Para o especialista, talvez seja melhor chamar o corpo d’água localizado junto à cidade de Porto Alegre “simplesmente de Guaíba”. Os povos falantes de tupi sabiam, “mais do que nós”, interpretar as características da paisagem e criaram um nome específico para este tipo de corpo d’água: Guahybe – o lugar em que o rio, subitamente, se tornava largo, formando uma enseada ou baía. Para o professor, é a língua portuguesa que parece ser limitada para abranger esse conhecimento. Igualmente limitada, em sua opinião, é a lei sobre APPs, pois obriga a classificação como rio ou lago, mesmo quando não é exatamente um ou outro. Quando é obrigado a designá-lo, Collischonn prefere chamá-lo de rio.

A prefeitura de Porto Alegre também afirma que o Guaíba exibe um comportamento dual: é um corpo d’água singular, que combina características tanto de rio quanto de lago. “Isso se deve ao fato de que, em suas margens, ele apresenta características de um lago, com vegetação e profundidade típicas desse tipo de corpo d’água, enquanto em seu centro, há um canal mais profundo com correnteza, lembrando as características de um rio”, afirma a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), em nota.

Fonte: GZH

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